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Quando pessoas se comportam como máquinas

Não posso iniciar este texto sem contar antes um dos episódios que o inspirou. No meu vestibular para o Instituto Militar de Engenharia (IME), a prova foi um pouco mais difícil que o habitual, de modo que poucas pessoas conseguiram atingir os requisitos mínimos para não serem eliminadas no exame intelectual. Assim, após a convocação dos aprovados, entrega de documentos, exames médicos e físicos e desistências, era possível contar nos dedos o número de candidatos excedentes em relação ao número total de vagas inicialmente previsto para o concurso. Naquele contexto, eu vi uma decisão surpreendente ser tomada: um General autorizou o ingresso de todos os candidatos como alunos do IME, mesmo aqueles poucos que estavam fora das vagas. Eu não me lembro exatamente das suas palavras, mas a ideia da mensagem transmitida ao justificar essa decisão era que se fosse para seguir puramente o que estava escrito em um documento em qualquer ocasião, não seria necessário um General naquela posição.

Essa situação me marcou e, com certeza, também marcou a vida de muitos que ali estavam presentes. Posteriormente, ao adquirir mais maturidade e conhecimento (de mundo e de computação), eu viria a refletir novamente sobre este fato e compartilho alguns pensamentos agora com você.

Dicotomia humano-máquina

Quando o General fez menção à responsabilidade de sua posição naquela ocasião, ele não a contrapôs ao trabalho de uma máquina, um computador, mas à de um militar de baixo grau hierárquico. Contudo, a relevância deste episódio enquanto ponto de partida desta discussão reside no fato de que, por vezes, dentro de nossa sociedade, observamos que o comportamento “esperado” de uma pessoa que exerce uma função respondendo com menor responsabilidade e o comportamento esperado de um computador são praticamente intercambiáveis.

Nós, seres humanos, temos a capacidade de pensar, discernir, avaliar situações e tomar decisões. Essa capacidade nos permite desenvolver senso crítico para questionar, concordar e discordar segundo um modelo mental que desenvolvemos desde o nosso nascimento, a partir dos aprendizados de nossas sucessivas experiências na vida. Em diversas situações, porém, é possível observar pessoas agindo estritamente segundo regras “bem” definidas. As aspas devem-se ao fato de que essas regras nunca conseguem abordar todos os casos; mesmo assim, o comportamento observado dessas pessoas é tal como o de um programa de computador, que executa fielmente cada instrução, cada passo do que está escrito e apenas o que está escrito. É como se seguissem um roteiro bem específico, incapazes de lidar com as circunstâncias do momento. Qualquer situação não prevista, fora do script, ou gera um erro ou gera uma resposta padrão: “senhor, essa solicitação não é feita neste departamento…”.

— Isso não pode.

— Não pode por quê?

— Não pode, porque não pode!

— ?????

Nnao se pode elencar uma única razão para que a situação atual seja essa, mas creio que o processo de desenvolvimento e organização industrial do século XX, com a divisão do trabalho nas linhas de montagem das fábricas, tenha uma forte contribuição sobre este estado. Tentamos maximizar a produtividade aproximando o trabalho humano do trabalho de uma máquina, prezando pela especialização dos trabalhadores em uma ou poucas funções dentro do todo.

No entanto, o reflexo dessa lógica propagou-se por toda uma cadeia produtiva de indústrias e serviços, inclusive em campos nos quais é bastante questionável se o melhor desempenho é aquele que se aproxima da máquina ou aquele imbuído do fator humano. Na tentativa de padronizar e garantir um determinado nível de serviço/atendimento, as empresas buscam adotar protocolos e treinar seus funcionários para seguí-los rigorosamente. O problema de se definir um protocolo para tudo, vem justamente de sua maior vantagem: diminuímos a influência do fator humano tanto quanto possível. Ao retirarmos autonomia das pessoas, podemos sacrificar faculdades como criatividade, improvisação, empatia ou flexibilidade.

No campo profissional

Existem atividades em que o benefício de diminuir a atuação do fator humano é quase consensual, seja pelo ganho exponencial em produtividade, pela preservação da saúde e de vidas humanas ou qualquer outro critério de avaliação objetivo. Notadamente, funções industriais de risco ou muito repetitivas, usadas como estereótipos de caracterização da linha de produção moderna, foram total ou parcialmente automatizadas, passando a mão de obra humana a ser empregada em tarefas de manutenção, coordenação, supervisão e outras que exigem mais da nossa capacidade cognitiva.

Se por um lado nos casos em que a natureza do trabalho é tipicamente mecânica, tivemos o incentivo de aproximar o trabalho humano ao de uma máquina, é curioso que nos casos em que lidamos com serviços voltados para grandes quantidades de pessoas, também tenhamos tido o incentivo de diminuir o fator humano; veja, por exemplo, o serviço público. Dentro da administração pública os agentes estão sujeitos a diversas regras e princípios, de modo que quando alguém toma uma decisão não prevista, tal como o referido General, assume para si um risco. É um caso em que é difícil estabelecer a margem de discricionariedade do agente, porque da mesma forma que nós, seres humanos, podemos ser atenciosos, empáticos e criativos, também podemos ser vaidosos, invejosos e corruptíveis. Como traçar o limite de comportamento humano-máquina em um contexto que exige impessoalidade, moralidade, interesse público, dentre tantos outros critérios subjetivos?

Pense, agora, nos vendedores em lojas físicas. Quando você entra em uma loja de roupas, por exemplo, os vendedores normalmente seguem um protocolo para te abordar: “Olá, tudo bem? Sou Fulano(a), posso te ajudar?”. Mas o que ocorre depois desse primeiro contato é que é determinante para a venda. Um vendedor que não busca interagir com o cliente poderia ser substituído por uma máquina de conveniência, daquelas que a gente coloca a nota, aperta um botão e reza para o produto cair. Os melhores vendedores saberão reagir à situação fora do protocolo, lidando até mesmo com clientes inusitados, adaptando-se à sua resposta, buscando te dar atenção, transmitir empatia…enfim, se conectar de alguma forma com você para te convencer a comprar.

— Presente para a sua mãe? Deixa eu te mostrar isso aqui, está saindo tanto que eu até comprei para a minha! Passa um ar de mulher moderna…

Este caso da loja de roupas é mais um exemplo no “campo cinza”: não é consenso que queiramos algo mais humano ou mais máquina. Há uma parcela significativa de pessoas propensas a defender um modelo de vendas mais pessoal para este tipo de produto e uma outra parcela disposta a defender um modelo mais objetivo, como a máquina de conveniência. Na verdade, a mesma pessoa pode querer ora um, ora outro. O crescimento do comércio digital, até mesmo de roupas e móveis, pode ser um indicador de que há mais pessoas dispostas a comprar sem interação humana, mas não exclui outros modelos.

Em outras ocasiões parece haver uma concordância com o desejo por um interlocutor humano, alguém que se comporte mesmo como uma pessoa. Imagino que você já tenha passado pela situação de ter algum problema com um prestador de serviço e precisar ligar para reclamar e solicitar um reparo, estorno ou cancelamento. Há pouco tempo atrás, parecia haver uma convergência para um padrão de serviço de baixíssima qualidade: você liga, digita uma série de números, selecionando opções ou inserindo seus dados, enquanto é guiado por uma voz automatizada. Depois disso, aguarda um tempo na linha até ser atendido por uma pessoa que segue um protocolo parecido, independente do seu problema. Não raras vezes, o desfecho era algo como “infelizmente não posso fazer nada, senhor” ou, quando muito, “este problema não é resolvido neste departamento, por favor ligue para 2345-6780” e lá vai você outra vez passar por tudo de novo…. Contudo, com o surgimento de algumas startups que estão trazendo um atendimento mais moderno e ampliando a concorrência em alguns setores (como uma certa Fintech roxinha), tenho percebido uma melhora em algumas centrais de atendimento e as pessoas atendidas percebem tão claramente a diferença que compartilham diversas histórias. Não é apenas agilidade no atendimento e eliminação da etapa do robô que fazem a diferença, mas é você perceber que tem alguém comprometido em te ajudar a resolver o seu problema, é você ter a sensação de que no fim terá alguma resposta satisfatória. Nesses momentos, você quer alguém que te escute e faça de tudo para te auxiliar, você quer que o outro entenda a sua dificuldade, se compadeça do seu transtorno e talvez cause alguma comoção interna para que você não passe mais por uma situação semelhante.

Vantagens de Protocolos

Protocolos não são de todo ruim. Como eu disse, sua fraqueza está justamente em seu ponto forte: eliminar ou reduzir a influência do fator humano — o que pode ser desejável. Por exemplo, protocolos são excelentes para nos ajudar a responder rapidamente diante de uma situação de estresse ou perigo, algo que exija prontamente uma atitude como a decolagem e aterrisagem de aeronaves, evacuação de embarcações, proteção contra terremotos etc. Nesses casos, não há tempo a perder pensando e a probabilidade de você cometer um erro ao tentar improvisar é muito maior do que a de você cometer um erro tentando seguir instruções que foram pensadas por outras pessoas fora daquele ambiente de estresse.

No próprio caso das Forças Armadas, durante uma missão, o espaço para o combatente raciocinar deve ser mínimo. O soldado precisa executar fielmente cada ordem e confiar no treinamento e na estratégia e tática traçadas pelos comandantes para não arriscar comprometer o sucesso da missão. Um soldado, no meio de uma zona conflagrada, ao ouvir “avança!”, tem que avançar, ainda que seja na direção do perigo. Se ele quiser raciocinar ou improvisar, pode titubear e colocar em risco a vida de seus companheiros.

Há situações que não são tão extremas, mas o custo do erro é muito maior que o ganho de um acerto excepcional. Por exemplo, uma determinada empresa de fast-food possui um protocolo que determina que toda batata-frita pronta há mais de 7 minutos deve ser descartada. Neste caso, o protocolo serve para tirar a subjetividade da avaliação de um ser humano diferente em cada loja, garantindo uma uniformidade no atendimento ao cliente. O custo de ter um cliente reclamando de batatas murchas em algum lugar é muito maior do que a economia que poderia ser feita se algumas pessoas excepcionais conseguissem verificar, para cada lote de batata-frita, o tempo exato em que ela poderia ser consumida com alta qualidade. Aliás, isso sequer é um critério fácil de definir. Mas nesses casos, será mesmo necessário que um ser humano execute essa tarefa?

Prognóstico

A tecnologia avança exponencialmente e mesmo para vendas e marketing existem estudos do uso de chatbots para interagir com as pessoas. Inevitavelmente, esse avanço tornará algumas profissões obsoletas para dar lugar a outras que nem imaginamos. Todavia, a necessidade humana de se conectar com o outro (enquanto cliente), a incapacidade das máquinas em reagir com criatividade a eventos imprevistos e os ganhos percebidos pela atuação de bons atores humanos no lado da oferta (vendedor) me fazem crer que alguns setores que tinham tendência em se engessar e mecanizar mais, como as centrais de atendimento, vão caminhar no sentido de se humanizar mais, reinventando o posto de trabalho e, consequentemente, requerindo novas competências de seus postulantes para que possam atuar com mais autonomia.

Depois dessa reflexão uma pergunta natural seria: você acha que a tecnologia chegará ao ponto de produzir máquinas com características intrinsecamente humanas? Para se aprofundar nisso, precisaríamos discutir coisas mais filosóficas e eu sugiro ler um pouco sobre o Teste de Turing. Certamente, a pergunta renderia outro texto, mas resumindo muito, no momento, não acredito que isso ocorrerá nos próximos 50 anos. E você, o que acha?

Author

Hallison Paz

Sonhador | Engenheiro de computação - pretende explorar outros corpos celestes